sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Canibalismo amoroso


Algumas frases tatuaram minha adolescência. Mesmo as menos aceitas. Sentia-me livre quando me juntava aos meus amigos, distantes daqueles que, a todo custo, tinham a incumbência de moralizar nossas conversas. Perto dos representantes legais da moral, sempre se ouvia um “cala boca”, ou um “se respeita”.Nos momentos de encontros partilhávamos as poucas experiências que tínhamos e as que desejávamos ter. Entre um verbo e outro, o “comer” se destacava. “Comi...”, “Vou comer...” (Adolescentes têm esta capacidade de ressignificar as palavras).Em minha concepção, “comer” expressa como nenhum outro conceito o impulso sexual e principalmente o sentimento de amor entre duas pessoas. Se Freud fosse contemporâneo à minha adolescência, sem dúvida, ele teria incorporado em seus estudos psicanalíticos esta definição: o homem vive um constante estado de canibalismo amoroso.Para a melhor compreensão do significado comer, resolvi recorrer ao dicionário, que diz: Tomar alimento. Introduzir. Consumir. Mas, podemos dilatar com olhos poéticos seu sentido. Comer é saborear, ou seja, pôr sabedoria nos atos. Degustar e envolver-se por inteiro. É perder o outro dentro de si. Assim, aprendi que a intima relação entre duas pessoas não começa na cama, mas na cozinha. A cozinha é a grande metáfora para os apaixonados. Lugar da poesia, dos pretextos e das entrelinhas. Adélia Prado, em um dos seus poemas deixa escapar este cotidiano mistério:...É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como “este foi difícil...” O silêncio de quando nos conhecemos atravessa a cozinha como um rio profundo...Somos noivo e noiva.A cozinha é o lugar que o sagrado se manifesta (mas tudo é sagrado). Cantinho das epifanias. Objetos, legumes, aroma, manifestação do deus Eros. Os nomes são transmutados e sugestivos. Tudo exposto, beterraba, rabanete, cenoura, chuchu, mamão, cabo da panela, é sem dúvida, lugar quente. Uma deliciosa metáfora.Por fim, o jantar à luz de velas numa noite fria de inverno. Para completar, a poesia de Alberto Caeiro:Pega-me tu ao coloLeva-me para dentro de tua casa.Despe meu ser cansado e humanoE deita-me em tua cama.É estranho está perto de alguém que amamos. Parece existir uma presença que escapa, que foge das mãos. Os gestos de carinho dão espaço para o que poderia ser. “Um contentamento descontente”. Da vontade de comer...De manhã, para iniciar o dia, uma prece e uma leve leitura do Cântico dos cânticos.Da janela avistamos às trepadeiras se alimentando do muro.Sei que apesar de tudo... A vida é um enamoramento.
Prof. Messias Nunes

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